Na última quinta-feira (12/4), o
Supremo Tribunal Federal fez mais do que permitir a interrupção da gravidez de
fetos anencéfalos. A corte deu o primeiro passo no sentido de reconhecer que as
mulheres são donas de seus direitos reprodutivos. Nas palavras do advogado Luís
Roberto Barroso, que representou a Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Saúde, autora da ação, “o direito de não ser um útero à disposição da
sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e
escolher”.
A plenitude dos direitos
reprodutivos da mulher perpassou os votos de diversos ministros, no mesmo
sentido dos argumentos de Barroso. Em seus 15 minutos de sustentação oral na
tribuna do Supremo, o advogado fundou seus argumentos em quatro pontos: 1 – Interrupção
de gravidez de feto anencéfalo não é aborto; 2 – Se considerada aborto, a
hipótese é colhida pelas exceções que permitem o aborto no Código Penal; 3 – O
princípio da dignidade da pessoa humana impede a incidência do Código Penal no
caso e; 4 – Viola os direitos fundamentais reprodutivos da mulher obrigá-la a
manter a gestação de um feto que não é viável fora do útero.
Os fundamentos guiaram a decisão,
tomada por oito votos a dois, de considerar que a interrupção da gestação em
casos de anencefalia do feto não é crime. Da tribuna, Barroso tingiu de cores
fortes, principalmente, o fundamento da dignidade da mulher.
“Viola a dignidade da pessoa
humana o Estado obrigar uma mulher a passar por todas as transformações físicas
e psicológicas pelas quais passa uma gestante, só que nesse caso ela estará se
preparando para o filho que não vai chegar. O parto para ela não será uma
celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da
maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios
para secar o leite que produziu para ninguém”, afirmou.
De acordo com o advogado, levar
ou não a gestação adiante tem de ser uma escolha da mulher: “Esta é a sua
tragédia pessoal, a sua dor. Cada pessoa, nessa vida, deve poder decidir como
lidar com o próprio sofrimento. O Estado não tem o direito de querer tomar essa
decisão pela mulher. Viola a dignidade da pessoa humana submetê-la a um
sofrimento inútil e indesejado”.
Confira a transcrição da
sustentação oral de Barroso:
Excelentíssimo senhor presidente,
senhoras ministras, senhores ministros, senhor procurador-geral da República:
Introdução
Ao iniciar esta sustentação, meu
primeiro pensamento vai para as mulheres, para a condição feminina, que
atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus
direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de
educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho. O
direito à liberdade sexual, conquistada derrotando todos os preconceitos. E
agora, perante esse tribunal, um capítulo decisivo dos seus direitos
reprodutivos. O direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de
ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher. Senhores
ministros: desde a noite dos tempos, muitos séculos de opressão feminina nos
contemplam nessa manhã.
Meu segundo pensamento vai para
as pessoas que por convicção religiosa ou filosófica não concordam com as
ideias e teses que vou aqui defender. Toda crença sincera e não violenta merece
respeito e consideração. Não passa pela minha cabeça mudar a convicção de
ninguém. A verdade não tem dono. O pluralismo e a tolerância fazem parte da
beleza da vida, da vida boa, da vida ética, da vida que inclui o outro. Aqui se
trava um debate entre valores e ideias. Cada um em busca do argumento que possa
conquistar maior adesão social. A única coisa ruim em um debate de valores e de
ideias é um dos lados poder utilizar, em seu favor, o poder coercitivo do
Estado. É um dos lados poder criminalizar o ponto de vista diferente. Essa
seria uma visão autoritária e intolerante da vida.
O papel do Estado e do Poder
Judiciário, nas questões que envolvem desacordos morais razoáveis, não é o de
escolher um lado, mas o de permitir que cada um viva a sua crença, a sua
autonomia, o seu ideal de vida boa.
Fundamentos da ação
A anencefalia é uma má formação
congênita que gera como consequência um feto sem cérebro. O diagnóstico dessa
anomalia é feito a partir da décima semana de gestação. Como foi comprovado em
audiência pública realizada aqui no Supremo Tribunal Federal, o diagnóstico de
anencefalia é 100% seguro e ela é letal em 100% dos casos. Esse feto não terá
vida extra-uterina.
O pedido nesta ação é que o STF
reconheça o direito de a mulher interromper a gestação neste caso, se esta for
a sua vontade, independentemente de autorização judicial. Pede-se a
interpretação conforme a Constituição dos artigos do Código Penal que
criminalizam o aborto para se declarar que eles não incidem nessa hipótese.
Diversos fundamentos sustentam essa pretensão.
Primeiro fundamento: A hipótese
não é de aborto e o fato é atípico
A interrupção da gestação de um
feto anencefálico não é aborto. É um fato atípico, que não recai na esfera de
aplicação do Código Penal. Isso porque o aborto, tal como regido pelo Código,
pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. E o feto anencefálico
não viverá fora do útero materno, ele não tem essa potencialidade de vida.
No Direito brasileiro não existe
uma definição para o momento do início da vida. Mas existe uma definição para o
momento em que ocorre a morte: é quando o cérebro para de funcionar. Está na
Lei de Transplante de Órgãos. Morte é a morte encefálica, a morte cerebral.
Pois bem: o feto anencefálico não
chega sequer a ter início de vida cerebral. Não há sensibilidade, dor ou
qualquer rudimento de consciência. Mesmo quem tenha uma posição de absoluta
inaceitação do aborto pode apoiar a interrupção da gestação nessa hipótese,
porque ela não caracteriza aborto.
Segundo fundamento: Interpretação
evolutiva do Código Penal
Ainda que se admita que a
hipótese seja de aborto, está-se aqui diante de uma exceção abrigada no sentido
e alcance do Código Penal, de modo implícito, mas inequívoco.
O artigo 128 do Código Penal,
como se sabe, prevê expressamente duas situações nas quais não se pune o
aborto: a) quando necessário para salvar a vida da gestante; e b) se a gravidez
resulta de estupro. Em ambas as hipóteses, o feto tem potencialidade de vida,
mas admite-se o aborto. No primeiro caso, ponderando-se a vida do feto com a
vida da mãe. No segundo, ponderando-se a vida do feto com a violência física e
moral sofrida pela gestante.
No caso da anencefalia, não há
vida potencial do feto fora do útero materno. Logo, a interrupção da gestação
nessa hipótese é menos gravosa do que nas exceções previstas no Código Penal.
Esta possibilidade só não constou expressamente do Código Penal porque ao tempo
de sua elaboração, em 1940, não havia meios técnicos para o diagnóstico.
Terceiro fundamento: Dignidade da
pessoa humana
O princípio da dignidade humana
paralisa o Código Penal. Ainda que se admita, mais uma vez, para fins de
argumentação, que a interrupção da gestação neste cenário seja uma hipótese de
aborto, a incidência das normas do Código Penal que criminalizam tal conduta
fica paralisada nesse caso, por força da aplicação do princípio da dignidade da
pessoa humana.
Uma das expressões da dignidade
humana é o direito à integridade física e psicológica.
Pois bem: viola a dignidade da
pessoa humana o Estado obrigar uma mulher a passar por todas as transformações
físicas e psicológicas pelas quais passa uma gestante, só que nesse caso ela
estará se preparando para o filho que não vai chegar. O parto para ela não será
uma celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da
maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios
para secar o leite que produziu para ninguém.
Levar ou não esta gestação a
termo tem de ser uma escolha da mulher! Esta é a sua tragédia pessoal, a sua
dor. Cada pessoa, nessa vida, deve poder decidir como lidar com o próprio
sofrimento. O Estado não tem o direito de querer tomar essa decisão pela
mulher. Viola a dignidade da pessoa humana submetê-la a um sofrimento inútil e
indesejado.
Quarto fundamento: Viola um
conjunto de direitos fundamentais da mulher obrigá-la a manter uma gestação
quando ou enquanto o feto não seja viável fora do útero
A criminalização da interrupção
da gestação quando o feto não é viável fora do útero viola um conjunto de
direitos fundamentais da mulher, assegurados na Constituição, viola os seus
direitos reprodutivos. Essa é a posição adotada por todos os países
democráticos e desenvolvidos do mundo, que descriminalizaram não apenas a
interrupção em caso de anencefalia, mas em qualquer caso, até a décima segunda
semana de gestação. Entre eles: Canadá, Estados Unidos, França, Reino Unido,
Alemanha, Itália, Holanda, Japão, Rússia, Espanha, Portugal, Dinamarca, Suécia.
Praticamente todos os países da Europa. A criminalização antes do ponto da
viabilidade fetal, hoje, é um fenômeno do mundo subdesenvolvido (África, países
árabes, América Latina). Estamos atrasados. E com pressa.
Para deixar bem claro: ninguém é
a favor do aborto! O aborto é sempre um momento traumático na vida de uma
mulher. O papel do Estado é prevenir que ele ocorra. No caso da anencefalia,
proporcionando uma dieta rica em ácido fólico. Nas situações gerais, pela
educação sexual, pela colocação de meios contraceptivos à disposição das
pessoas em idade fértil ou amparando as mulheres que desejam ter seus filhos e
enfrentam condições adversas. O aborto não é uma coisa boa, embora possa ser
necessária ou inevitável. A sua criminalização, em certos casos, viola direitos
fundamentais das mulheres. E o caso posto perante este tribunal é um deles.
Obrigar a mulher a manter a
gestação que ela não deseja, quando o feto não tem viabilidade fora do útero
viola a sua autonomia da vontade, a sua liberdade existencial. Alguém poderia
insistir no argumento da potencialidade de vida do feto, independentemente da
sobrevida que ele venha a ter. Mas a verdade é que se o feto não tem
viabilidade sem o corpo da mãe, e se a mãe não deseja tê-lo, obrigá-la a levar
a gestação a termo significa funcionalizá-la, instrumentalizá-la a um projeto
de vida que não é o seu. Ela estará sendo tratada como um meio e não como um
fim em si, em violação à sua dignidade.
Em segundo lugar, há violação do
direito à igualdade. Só as mulheres engravidam. Se os homens engravidassem, a
interrupção da gestação — não apenas do feto anencefálico, mas qualquer
gestação — já teria sido descriminalizada há muito tempo, como observou, com a
sensibilidade costumeira, o ministro Carlos Ayres. Obrigar uma mulher a manter
a gestação que não deseja, não sendo o feto viável fora do útero, é
discriminá-la em relação aos homens, que não estão sujeitos a essa obrigação.
Ou a escolha é da mulher ou não haverá igualdade.
Tudo sem mencionar o dramático
problema de saúde pública e a imensa discriminação contra as mulheres pobres. A
criminalização é seletiva e o corte é de classe. De acordo com o Ministério da
Saúde, dia sim, dia não uma mulher morre de aborto clandestino no país. Todas
pobres.
Quem é a favor da vida deve ser
contra a criminalização. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, a
criminalização não diminui o número de abortos. Apenas impede que ele seja
feito de modo seguro e aumenta o número de mortes de gestantes. Em países como
o Brasil, quem é a favor da vida tem que ser contra a criminalização.
Conclusão
Aí estão, à disposição do
Tribunal, quatro fundamentos para acolher o pedido. Do mais minimalista ao mais
abrangente: não é aborto; a hipótese é colhida pelas exceções do Código Penal;
o princípio da dignidade da pessoa humana impede a incidência do Código Penal;
viola os direitos fundamentais reprodutivos da mulher obrigá-la a manter a
gestação de um feto que não seja viável fora do útero.
Nessa matéria, o processo legislativo,
o processo político majoritário, não consegue produzir uma solução. E quando a
história emperra, é preciso uma vanguarda iluminista que a faça andar. É este o
papel reservado ao Supremo no julgamento de hoje. Qualquer dos fundamentos
conduz à procedência do pedido. Mas se este tribunal reconhecer a plenitude dos
direitos reprodutivos da mulher, este será um dia para jamais esquecer. O marco
zero de uma nova era para a condição feminina no Brasil.
Disponível: Revista Consultor
Jurídico, 17 de abril de 2012
Por Rodrigo Haidar
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2012-abr-17/direito-mulher-nao-utero-disposicao-sociedade
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe o seu comentário, com suas críticas e sugestões (selecione a opção "Nome/URL"):